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Mala (viajar com + de 60)

Minha mala e eu

                    Tudo o que eu possuía de material naquele momento estava ajeitado em camadas superpostas numa pequena mala, marrom, dócil ao manejo. Ela seguia meus passos como um cachorrinho fiel, mesmo quando era preciso, aos atropelos, subir ladeiras, escadarias, convés de navio, estribos de trens. Executávamos um duo sereno pelas ruas das cidades numa cadência contínua das rodinhas trilhando as minhas pegadas: Paris, Londres, Roma, Gênova, Cagliari, Agrigento, Tropea, Nápolis, Nice, Marselha, Avignon, Calais ....
          Foi escolhida ao acaso, e pelo bom preço, em Paris. Comigo cumpriu sua função neste mundo, carregou peso, conheceu países e lugares. Sempre cheia até o limite da sua capacidade, foi arrastada, atirada, amontoada, serviu de cadeira em momentos de espera. Levada a um sapateiro, na Itália, sofreu pequeno reparo, mas o conserto durou pouco.
                                                                                       fotos by: Ira
Em Avignon (França), na metade da viagem                            
       Mesmo com uma das alças arrebentadas e um rasgão no casco, continuou servindo. Agüentou bem uns 100 dias e - na sua última viagem - chegou repleta de livros, saindo da esteira, em Floripa, com apenas uma das rodinhas e sem nenhuma alça. 
                 Pedia colo. Claro que me afeiçoei a ela e, confesso, foi difícil me desfazer daquela legítima mala sem alça. Não queria abandonar assim uma leal companheira de viagem só porque ela perdeu a serventia.  
Porto de Nápolis
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Souvenirs (viajar com + de 60)

Souvenirs preciosos a custo zero
          
             Qualquer impulso de compras, roupas, supérfluos ou souvenirs era barrado no nascedouro pela contingência de carregar bagagem mínima. As lembranças vieram em fotos e gravadas na memória. Consistência e leveza.. Perdura o que aprendi sobre mim mesma e que ainda impulsiona mudanças na minha vida rotineira: não mais armários abarrotados, menos livros, menos produtos caros e inúteis, menos bobagens no carrinho do supermercado. É possível viver com bem menos do que eu supunha fosse necessário.
               Voltei mais confiante depois de ter provado o sabor indefinível de estar num lugar estranho, não conhecer nada nem ninguém, ouvir línguas estranhas sem compreender as palavras, tudo observar e não poder trocar comentários. Sensação indescritível, mas boa. Fui remoendo idéias, observando minhas reações em território neutro, confrontei medos e ilusões. Foi como enxergar de fora para dentro e ver, aos poucos, desabrochar uma outra “eu” que esteve até então oprimida.
           Reaprendi a olhar o mundo com o deslumbramento de criança que ainda me lembro. Como quem – a qualquer instante – vê algo pela primeira vez, tudo ao redor adquiriu novo interesse. Cada momento é único e não canso de admirá-los, inclusive aqueles que se repetem como o pôr-do-sol, que nunca é o mesmo todos os dias. O pousar suave e preciso de uma gaivota na praia é único cem vezes. Adoro andar pelas ruas vendo o desenho dos prédios contra o céu, as cortinas que balançam ao vento numa janela, o contorno das nuvens. O canto dos pássaros, uma risada, nada disso se repete ou entedia.
                                                                       Foto by Liu Hogjie
A vida é a minha viagem
      Curiosidade, entusiasmo, simplicidade, confiança, riso fácil, solidariedade. Características naturais da infância que, esquecidas, abrem espaço para sentimentos opostos àquela alegria genuína e espontânea de apenas viver o momento e sonhar com o futuro. Ultrapassada a porta dos 60 anos, fiz minha primeira viagem sozinha e aprendi mais sobre mim mesma. Quero escrever e descrever essa experiência como quem apenas vive e sonha.
          O presente é o meu momento absoluto, entendido que não posso mudar o passado e nada sei do futuro. Isso implica fazer escolhas do que realmente é importante para preencher esse momento. Nunca fui boa nisso, mas estou aprendendo que o presente é tão importante, mas tanto, que eu  p-r-e-c-i-s-o  saber decidir o que eu quero para mim  a-g-o-r-a. Não há segunda chance no aqui e agora. Ao mesmo tempo, só ele renasce e se renova a cada instante para que eu o prenda, apreenda, reaprenda. 
    Decidir é o passo que antecede todos os outros. Não desistir sem ao menos tentar mostrou-me que muitas coisas são fáceis embora pareçam impossíveis. Seguir em frente tornou-se meu lema (ah, é muito bom comprar passagens só de ida). A vida é a minha viagem. Quero ver tudo levando comigo só o que consigo carregar sem esforço e que seja útil naquele trecho do itinerário. Alterado o rumo, readapta-se o conteúdo da bagagem. 
           Quando se é criança não se fica pensando o tempo inteiro em acumular coisas, em garantir “segurança” para o futuro. Estou aprendendo a usar as coisas enquanto elas me servem. Quando não, elas podem ser trocadas, doadas, são substituíveis. Meu espaço cotidiano é limitado, preciso escolher como vou ocupá-lo sem atrapalhar meus movimentos. Meu orçamento, idem. Então, se quero dançar e conhecer novos lugares, é preciso aprender a ter menos coisas e gastar menos. 
     Para completar, minha rotina de caminhadas diárias durante aqueles quatro meses resultou num benefício adicional de quatro quilos a menos na balança. Posso dizer que voltei mais leve mesmo! De corpo e alma.
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